RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513  
Altamir Botoso  
Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita  
Filho, UNESP, Campus de Assis-SP e docente do curso de Letras/Espanhol  
e do Mestrado em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul,  
Campus de Campo Grande-MS. E-mail: abotoso@uol.com.br.  
PhD in Literature from Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita  
Filho, UNESP, Campus de Assis-SP and professor of the  
Literature/Spanish course and the Master's Degree in Literature at the State  
University of Mato Grosso do Sul, Campus de Campo Grande-MS. Email:  
Este artigo passou por avaliação por pares cega e software anti-plágio.  
LICENÇA ATRIBUIÇÃO NÃO COMERCIAL 4.0 INTERNACIONAL CREATIVE COMMONS CC BY-NC  
O PROTAGONISTA PÍCARO DO ROMANCE EL MUNDO  
ALUCIANTE, DE REINALDO ARENAS  
RESUMO  
A picaresca clássica espanhola é constituída por um conjunto de três obras: Lazarillo de Tormes  
(1553), romance anônimo, Guzmán de Alfarache (1599-1604), de Mateo Alemán e El Buscón  
(1626), de Francisco de Quevedo. Nesses livros, o personagem central é um pícaro, que tenta  
ascender socialmente e, em síntese, abandonar a sua condição de personagem marginalizado,  
para integrar-se à sociedade que o rodeia e o repele. Levando em conta o exposto, o nosso  
propósito é analisar o protagonista do romance El mundo alucinante, Servando Teresa de Mier,  
do cubano Reinaldo Arenas, ressaltando elementos de sua construção que o aproximam do  
pícaro espanhol. Nesse sentido, verificamos que Servando, ao longo das peripécias narrativas,  
assume comportamentos e atitudes próprias dos pícaros e, dessa maneira, ele pode ser  
considerado como um personagem que apresenta traços dos pícaros espanhóis em suas ações e  
no confronto que se estabelece entre ele e a sociedade que o rodeia. Como suporte para análise  
pretendida, pautar-nos-emos pelos estudos críticos de Bakhtin (1981), Barthes (1978), Eco  
(1985), González (1994), Hutcheon (1989).  
Palavras-chave: Pícaro. romance picaresco. El mundo alucinante. Reinaldo Arenas. Literatura  
cubana.  
THE PICARO PROTAGONIST OF THE NOVEL EL MUNDO  
ALUCIANTE, BY REINALDO ARENAS  
ABSTRACT  
The classic Spanish picaresque is made up of a set of three books: Lazarillo de Tormes (1553),  
an anonymous novel, Guzmán de Alfarache (1599-1604), by Mateo Alemán and El Buscón  
(1626), by Francisco de Quevedo. In these books, the central character is a pícaro, who tries to  
rise socially and, in short, abandon his condition as a marginalized character, to integrate into  
the society that surrounds him and repels him. Taking the above into account, our purpose is to  
analyze the protagonist of the novel El mundo alucinante, Servando Teresa de Mier, by the  
cuban writer Reinaldo Arenas, highlighting elements of his construction that bring him closer  
to the Spanish pícaro. In this sense, we see that Servando, throughout the narrative adventures,  
assumes behaviors and attitudes typical of the pícaros and, in this way, he can be considered as  
a character who presents traits of the Spanish pícaros in his actions and in the confrontation that  
is established between him and the society that surrounds him. As support for the intended  
analysis, we will be guided by the critical studies by Bakhtin (1981), Barthes (1978), Eco  
(1985), González (1994), Hutcheon (1989).  
Keywords: Pícaro. Picaresque novel. El mundo alucinante. Reinaldo Arenas. Cuban literature.  
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O romance histórico El mundo alucinante (1966) foi escrito pelo cubano Reinaldo  
Arenas (1943-1990) e nessa obra é narrada a trajetória do frei mexicano José Servando Teresa  
de Mier Noriega y Guerra (1763-1827), que lutou pela libertação das colônias americanas do  
jugo da metrópole espanhola. Foi perseguido pela Inquisição, quando discursou sobre a  
aparição da Virgem de Guadalupe no México e declarou ser desnecessária a intervenção de  
espanhóis na América, uma vez que seus habitantes já eram cristãos antes de sua chegada. O  
frei foi condenado à prisão e sua vida foi marcada por inumeráveis fugas e pela peregrinação  
em vários países como França, Inglaterra, Estados Unidos, dentre outros. O livro de Arenas  
reconstrói a imagem de frei Servando como uma das figuras mais emblemáticas da história  
literária e política da América Latina.  
No romance, o propósito de Reinaldo Arenas, ao recontar a história de frei Servando, é  
delineado logo no prefácio, em forma de solilóquio: “Estás, querido Servando, como lo que  
eres: una de las figuras más importantes (y desgraciadamente casi desconocida) de la historia  
literaria y política de América” (Arenas, 1997, p. 24). A narrativa ficcional apresenta, pois, um  
caráter eminentemente reivindicatório e assume as tarefas de destacar e valorizar a ação de  
Servando Teresa de Mier. Ainda no prefácio, Arenas acentua a importância capital do homem  
para a história ao afirmar que “el hombre es, en fin, la metáfora de la Historia, aun cuando,  
aparentemente intente modificarla y, según algunos, lo haga” (Arenas, 1997, p. 19). Na opinião  
de Arenas, homens como Servando Teresa de Mier são tributários de reconhecimento histórico,  
razão pela qual seu romance efetua o resgate do frei dominicano e propõe a sua retomada, agora  
instalado e plasmado num novo patamar, numa nova condição a de herói romanesco.  
A ficção procura “corrigir”, poderíamos dizer, a visão da figura histórica e, por meio da  
paródia e da intertextualidade, da utilização da categoria do real maravilhoso e do emprego de  
três narradores distintos, fazer-lhe justiça, tirando-o de sua posição periférica e trazendo-o para  
uma posição central, quando o eleva à categoria de protagonista e revaloriza a sua luta pela  
causa independentista. Procura, além disso, “humanizá-lo”, mostrá-lo como homem obstinado,  
íntegro, que não se deixa corromper, e acima de tudo, tão relevante ou até mais que o próprio  
Simon Bolívar, considerado como o “Libertador da América”.  
Como se sabe, a ficção pode recriar a história, revalorizar personagens esquecidos e  
“invadir” outras áreas do conhecimento (como a psicologia, a antropologia, a geografia, por  
exemplo) porque, segundo Roland Barthes (1978, p. 18-19),  
a literatura assume muitos saberes [...] e faz girar os saberes, não fixa, não  
fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é  
precioso. Por um lado, ele permite designar saberes possíveis - insuspeitos,  
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irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência, está sempre  
atrasada ou adiantada com relação a esta [...]. A literatura engrena o saber no  
rolamento da reflexividade infinita: através da escritura, o saber reflete  
incessantemente sobre o saber.  
É, portanto, a capacidade que a literatura possui de lidar com diferentes 'saberes' e de  
refletir sobre eles que lhe permite a entrada no território da história e, a partir daí, a invenção  
de eventos e contextos do passado. Dos contatos que se dão entre ambas surgiram e estão  
surgindo obras literárias magistrais que, com certeza, tornam-se canônicas, inclusive pelo teor  
de inovações que as constrói.  
Dessa forma, o propósito deste artigo é estudar as relações intertextuais que se  
estabelecem entre o romance El mundo alucinante e as três obras que constituem o núcleo da  
picaresca clássica: Lazarillo de Tormes, Guzmán de Alfarache e El Buscón.  
Um romance, como postula Umberto Eco (1985, p. 13), constrói-se com uma "matéria  
que possui suas próprias leis naturais, mas que ao mesmo tempo traz consigo a lembrança da  
cultura de que está embebida” por meio da intertextualidade. Na literatura de todas as épocas  
e, particularmente, na contemporânea, a presença de fragmentos, alusões e reescritura de outros  
textos tornou-se uma marca constante e, dessa forma, os livros falam sempre de outros livros e  
toda história conta uma história já contada.  
Na atualidade, é praticamente impossível analisar um romance sem tocar na questão do  
intertexto, uma vez que as obras retomam-se mutuamente, num constante diálogo. Cada obra é  
única e original, mas ao mesmo tempo é releitura de obras do passado e do presente.  
Uma das modalidades mais conhecidas de intertextualidade é a paródia, que foi estudada  
pelo crítico Mikhail Bakhtin (1981) na análise que ele realiza das obras de Dostoievski. Mais  
recentemente, Linda Hutcheon (1989, p. 13), redefinindo o termo, afirma que a paródia é "um  
dos modos maiores da construção formal e temática de textos". Esse procedimento vem sendo  
empregado largamente nas obras pós-modernas e se caracteriza pela retomada, releitura,  
reescritura de outros textos por uma obra literária. A paródia pode ser considerada, ainda  
segundo Hutcheon (1989, p. 13), "repetição com distância crítica, que marca a diferença em  
vez da semelhança". Quando o recurso paródico é utilizado, "as mesmas personagens são  
mencionadas, a mesma postura moral sugerida, mas as relações com elas são ironicamente  
diferentes" (Hutcheon, 1989, p. 17-18). Portanto, a paródia estabelece uma relação formal ou  
estrutural entre dois ou mais textos e depende da capacidade do leitor para perceber e  
compreender sua estruturação e efeitos numa obra.  
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Em El mundo alucinante, Reinaldo Arenas (1997, p. 18) qualifica seu protagonista, José  
Servando Teresa de Mier Noriega y Guerra, como "homem de mil dimensões", "pícaro",  
"aventureiro" e por meio desses vocábulos, de certa forma, o romancista já indica um dos  
gêneros literários que é parodiado na obra, além da estrutura do romance de viagens. Trata-se  
do romance picaresco e, principalmente, da figura do pícaro, que apresenta como leis  
fundamentais a astúcia e as estratégias para resolver situações conflituosas, a autobiografia,  
fundamental como elemento estruturador na picaresca clássica, o contato com as camadas mais  
baixas, a “mancha” de origem, proveniente de pais indignos, ladrões e prostitutas  
principalmente, fatores que levam o pícaro a empreender todos os esforços para ascender  
socialmente e ainda, a inconstância de seus protagonistas. Assim como Mier, os pícaros não  
são capazes de permanecer num local fixo por muito tempo, sempre partindo em busca de novas  
aventuras, fato que impulsiona o relato.  
O personagem de Arenas passa pelas mesmas etapas que os protagonistas das obras  
consideradas como o núcleo da picaresca clássica: Lazarillo de Tormes (1554), de autor  
anônimo, Guzmán de Alfarache (1ª. parte 1599, 2ª. parte 1604), de Mateo Alemán (1547-  
1614), El buscón (1626), de Francisco de Quevedo (1580-1645). Os pícaros dessas obras,  
Lazarillo, Guzmán e Pablos apresentam muitas semelhanças com o protagonista de El mundo  
alucinante no que se refere ao aprendizado e ao contato com uma sociedade corrompida e  
desonesta. Os princípios da aventura e itinerância são flagrados no seguinte fragmento:  
La primera noche la anduve solo. Pero en la segunda me tropecé con un  
ejército de arrieros, [...].  
Y me desvalijaron. [...] Así pues: después de mucho andar por tierras calientes  
y heladas y por llanuras tan grandes que uno camina y cree que está siempre  
en el mismo lugar, después de cruzar en un solo pie precipicios desde los  
cuales las nubes se veían allá abajo como diminutos zopilotes recién nacidos,  
después de pasar junto a una trullada de indios (que a todos los arrieros  
despeluzaron), y después de dormir en mesones (donde le robaban a uno hasta  
el cabello, dicen que para hacer colchones); después de eso y otras cosas (entre  
ellas el llevar la barriga reventando del atole de arena que nos vendieron en el  
mesón, por lo cual voy dejando el rastro por donde quiera que cruzo), parece  
que ya llego (Arenas, 1997, p. 36-37).  
Geralmente, nos romances picarescos, o protagonista, quando deixa sua casa e parte em  
busca de melhor sorte, encontra pelo caminho seres corruptos e desonestos que o roubam e o  
maltratam, assim como ocorre nas primeiras aventuras vividas por Mier ao sair de Monterrey.  
Tal como os pícaros clássicos, ele é uma vítima que aos poucos desenvolve a picardia como  
uma forma de sobreviver e assegurar a liberdade.  
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No exemplo citado, tem-se o encontro de Servando com vários personagens que se  
aproveitam de sua inexperiência. É importante ressaltar os verbos de movimento “andar”,  
“cruzar”, “passar” que caracterizam a locomoção do personagem, impulsionando as ações na  
trama. Também a manutenção da primeira pessoa no fragmento é outro fator que podemos  
destacar na aproximação das aventuras de Servando com os pícaros clássicos, pois a  
autobiografia, como já mencionamos, é um princípio estrutural mantido nas três narrativas que  
compõem a picaresca clássica.  
Mier vai encontrando com tipos variados de personagens por causa do longo caminho  
que está percorrendo. Arrieiros roubam-no, em seguida eles são escalpelados por índios. O frei  
dorme em uma estalagem cujos proprietários são exímios ladrões; é enganado por comerciantes  
que lhe vendem “atole”, um tipo de papa de farinha dissolvida em água ou leite fervido, com  
areia, o que lhe causa uma enorme diarréia. Como se vê, de modo semelhante aos pícaros  
clássicos, a locomoção de Servando Teresa de Mier possibilita o encontro com vários estratos  
sociais, revelhando-lhe que todos sobrevivem de enganar e roubar os mais incautos.  
Tal como os pícaros clássicos, o roubo, as burlas e os enganos são fundamentais para  
que o menino que saiu de Monterrey perca a inocência e se dê conta de que está entre "lobos"  
e precisa ser mais esperto para não ser roubado e ludibriado. A fome também é uma realidade  
constante para o pequeno aventureiro, como o era para Lázaro e os demais pícaros. A partir  
destas desventuras iniciais, o personagem se fortalece e não permite a violação que os noviços  
e o padre do convento dominicano querem lhe infligir. Caminhando pelas ruas, ele entra em  
contato com mendigos e ladrões de toda espécie. E, para sobreviver nesse meio, o aprendizado  
é fundamental, sendo que esse aprendizado só é conseguido pelo convívio nesse mundo de  
marginais.  
Quando Mier se torna adulto e foge de Valladolid para Madri, ele, na qualidade de  
narrador-personagem, relata a grande quantidade de mendigos que invadiram essa cidade:  
Pero si de veras hay algo que se queda en la memoria del que visita Madrid  
son las tribus de mendigos, que se lanzan a abrirle a uno la portezuela del  
coche. Y son tantos los que vienen con la misma intención, que el carro se  
derrumba y uno tiene que salir por el techo dando voces y llamando a las  
autoridades, que asustadas salen huyendo. Después que se logra salir con vida  
de aquel ajetreo, la caravana de mendigos, que nubla toda una calle, lo va  
siguiendo a uno hasta la misma casa. Y si no se les tira un puñado de pesetas  
son capaces de quitarnos hasta la vida (Arenas, 1997, p. 119).  
No trecho acima, o narrador-testemunha descreve a miséria de Madri, representada por  
seus habitantes. O verbo “nubla” como predicado de “caravana de mendigos” estabelece uma  
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tensão na relação entre mendigos, que se tornam criminosos e os visitantes da cidade, que são  
vítimas em potencial daqueles. É notória a comicidade presente na cena pela disposição dos  
mendigos levada a extremos para conseguir algum dinheiro.  
A convivência com “tribos de mendigos” é outra semelhança que Mier compartilha com  
os pícaros clássicos. No caso do frei dominicano, este lança um olhar impiedoso e crítico a  
esses seres que são capazes de atitudes extremas, andam sempre em bandos e podem até matar.  
A luta pela sobrevivência é o motor de suas ações e não há lugar para atitudes altruístas ou  
solidárias. No meio deles, o frei é obrigado a aprender e seguir o ofício da picardia, pois este é  
o único recurso de que dispõe para sobreviver.  
Um pouco mais adiante, na continuidade das aventuras do frei dominicano, o narrador  
descreve com acuidade como esses seres marginalizados, que vem dos campos para a cidade,  
tornam-se pícaros:  
Hay en Madrid una cantidad tan numerosa de seres ‘pensantes’ como no los  
hay en ninguna otra parte del mundo. Esta son gente de provincia, muy  
soñadores, que viene a la corte con la esperanza de hacer fortuna y se aloja en  
‘jonucos’, y espera, como quien dice, a que el maná le caiga del cielo; pero  
nunca le cae nada, a no ser la miseria que se le echa por todas partes. Estos  
desgraciados terminan volviéndose pícaros o mendigos, que todo es lo mismo,  
o van a parar a las cárceles, [...] (Arenas, 1997, p. 120).  
O narrador emprega o vocábulo “pensantes” para caracterizar os mendigos que não  
exercem nenhum trabalho e vivem à margem da sociedade, valendo-se de sua esperteza e  
astúcia para sobreviver. O enxerto citado demonstra a transformação por um processo de  
gradação dos camponeses “sonhadores” em “desgraçados”, “pícaros” e “mendigos”.  
A existência de um número tão elevado de mendigos deve-se à imigração do campo  
para a cidade. O sonho rapidamente converte-se em pesadelo porque, ao invés de conseguirem  
um vida melhor, tornam-se miseráveis, cujo destino é a mendicância ou a prisão. Um tom de  
simpatia e também de recriminação, observado nos qualificativos apontados anteriormente e  
que são dirigidos a esses desafortunados, mistura-se e perpassa as considerações do narrador-  
personagem no fragmento citado.  
É inegável que várias passagens do romance de Arenas guardam grandes similaridades  
com o romance picaresco. Contudo, é preciso enfatizar que o pícaro é pragmático, só pensa em  
si mesmo, enquanto Mier tem um projeto que envolve a sua terra, o seu povo: a libertação das  
colônias da metrópole espanhola. De acordo com as teorias de Mario González (1994, p. 353-  
357) expostas em seu livro A saga do anti-herói, podemos considerar que Servando Teresa de  
Mier, na sequência das ações, será um protótipo do “pícaro-quixote”, pois se ele é uma vítima,  
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é também alguém disposto a denunciar os males da sociedade, além de possuir um projeto que  
abrange a liberdade das colônias americanas, projeto que pode até ser considerado quixotesco,  
mas que o protagonista sustenta com firmeza em todo o romance. Essa atitude e esse projeto  
diferenciam Mier dos pícaros que, apesar de também denunciarem as mazelas da sociedade que  
os rodeia, são pragmáticos, preocupam-se somente com o próprio bemestar, têm como único  
objetivo a integração na sociedade que criticam e não pretendem reformá-la, modificá-la ou  
transformá-la.  
O frei assume, por vezes, ofícios semelhantes aos dos pícaros clássicos, como se pode  
observar no seguinte fragmento:  
Iba yo de lazarillo del conde de Gijón que, por supuesto, no sabía francés  
[...].Pero pronto me cansé de hacerle el papel de lazarillo a aquel perulero  
desfachatado: yo -que bien sabía cómo tratan de pelar los europeos a un  
americano en cuanto llega- no cesaba de aconsejarle y de sujetarle las manos  
al conde, aun cuando gastase en mi persona. Pero él se ponía furioso, y seguía  
gastando y derrochando a manos llenas. En una de estas discusiones resolví  
abandonarlo y entregarme otra vez a la pobreza, para la cual, después de todo,  
parecía estar formado (Arenas, 1997, p. 172).  
Há uma referência linguística direta ao personagem do primeiro texto que integra a  
picaresca clássica, Lázaro de Tormes, que é também chamado de Lazarillo ao longo de sua  
história e cujo primeiro “trabalho” é ser guia de um cego astuto e mesquinho. A diferença entre  
Lazarillo e Mier é que Lázaro sofre toda sorte de maus tratos com o cego numa fase que é  
considerada como de aprendizagem para o personagem, ao passo que o frei nutre um sentimento  
de amizade pelo conde e pretende ajudá-lo.  
O sintagma “iba yo de lazarillo” refere-se ao ofício de criado que assume Servando  
Teresa de Mier em relação ao conde de Gijón. Isso significa que Mier efetuava pequenos  
trabalhos para o conde, entre eles o de intérprete porque Gijón não sabia francês e ambos  
estavam em Paris. Assim como Lázaro procura proteger um de seus amos, o escudeiro,  
Servando Teresa de Mier também tem uma atitude de proteção em relação ao conde, tentando  
livrá-lo dos europeus que querem roubá-lo, aconselhando-o a economizar e a não gastar.  
Entretanto, essa atitude do frei gera o descontentamento do conde e provoca discussões entre  
ambos, fato que impele Mier a abandoná-lo.  
A referência ao Lazarillo de Tormes é explícita, como destacamos, basta recordarmo-  
nos que o primeiro amo do personagem Lazarillo é um cego, com o qual passa por uma série  
de dificuldades até que se decide a abandoná-lo. Vale ressaltar que o fragmento faz uma alusão  
paródica ao pícaro da obra de autor anônimo que iniciou o gênero picaresco. A diferença que  
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se observa é que Lázaro tem amos mesquinhos e miseráveis, ao passo que Mier consegue um  
"amo" que é perdulário, gasta dinheiro com ele e com todos que o cercam.  
No capítulo XXXI, a menção a ofícios vis e degradantes também remete à picaresca  
clássica e seus protagonistas, como podemos observar no exemplo abaixo, no qual Servando  
relata as dificuldades vivenciadas durante sua permanência nos Estados Unidos:  
Y otra vez agenciando de mil modos para no morir de hambre, mitigándola  
apenas con la insípida sosa, [...].Pero no voy a contar la retahíla de  
calamidades por las que tuve que pasar en esta tierra, para subsistir, pues ahora  
las recuerdo y todavía me avergüenzo. Enumeraré solamente mis trabajos más  
decentes: limpiar traseros, recoger trapos, cuidar viejos millonarios y hombres  
anormales, traducir libros (el peor y más sucio de todos los trabajos) y recoger  
basura, para venderla como algodón a los granjeros del norte... (Arenas, 1997,  
p. 265).  
A estrutura sintagmática “série de calamidades” resume a atuação de Servando Teresa  
de Mier nesta parte do romance e também pode ser relacionada com a maioria das situações  
vividas pelos pícaros Lázaro, Guzmán e Pablos que, embora atuem em episódios nos quais o  
humor é um componente estruturador, sempre passam por experiências perigosas e até  
dolorosas, principalmente na fase do aprendizado da vida picaresca.  
Satisfazer a fome é um dos objetivos primordiais dos pícaros clássicos, assim como não  
perecer por causa da fome também é a preocupação de Mier no exemplo mencionado. Para sair  
da miséria e se alimentar, Servando Teresa de Mier aceita qualquer trabalho que lhe é proposto,  
realizando qualquer trabalho degradante, como “limpar traseiros” e “recolher trapos e lixo”. Da  
mesma forma que os pícaros realizam um trabalho intelectual, a escritura de sua autobiografia  
, Mier exerce o ofício de tradutor de livros, que ele considera como “o pior e mais sujo” dos  
trabalhos quando o compara com os “trabalhos mais decentes” arrolados anteriormente, ou seja,  
“limpar traseiros”, “recolher trapos”, “cuidar de velhos milionários e homens anormais”,  
“recolher lixo”. Há aqui uma ironia porque esses trabalhos mencionados pelo narrador-  
personagem não são nada decentes se comparados ao trabalho de tradutor. Este certamente  
deveria ser considerado o mais difícil, mas não o mais degradante.  
É importante observar que os pícaros não agiriam como Mier no episódio do conde  
Gijón e aproveitariam a oportunidade para roubá-lo. Em relação aos "trabalhos decentes",  
notamos que quase todos podem ser classificados como "pouco decentes". O único ofício que  
mereceria uma maior relevância seria o de tradutor e, justamente esse, o narrador-personagem  
classifica como o pior de todos. Aqui é válido ressaltar que, diferentemente dos pícaros, Mier  
realiza trabalhos manuais na trama.  
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No romance picaresco, o humor se faz presente na maioria das aventuras vivenciadas  
pelo pícaro. Até mesmo nas situações mais trágicas, é possível flagrar momentos em que o  
humor aflora com maior ou menor intensidade, conforme o caso. O pícaro procura acender  
socialmente, mas sempre fracassa. Por esse motivo, é possível concluir que o humor estrutura  
a ideia de fracasso nas ações dos pícaros, por meio da ironia e da ambiguidade. Além disso, o  
humor agiliza o relato, atenua os conflitos. No relato sobre Servando Teresa de Mier,  
particularmente nos episódios que parodiam a picaresca clássica, notamos também a presença  
do humor. No capítulo IX, por exemplo, ocorre uma das cenas mais divertidas e bem-  
humoradas de El mundo alucinante, que se dá durante o ataque de um navio negreiro ao 'La  
Nueva Empresa', navio que vai levar Mier à Espanha:  
[…] me hallé sobre la cubierta de un gran barco y entre millares de negros  
desnudos. Y averiguando qué había sucedido pude al fin deducir que los  
barcos que habían atacado a ‘La Nueva España’ fueron a su vez atacados por  
una flota de negreros. Así que me hallé entre una flota de esclavistas, y como  
un esclavo más... Al mediodía, [...] una docena de hombres entraban con  
grandes mangueras y empezaban a tirarnos agua, a mí y a todos los negros.  
[...] y porque pensaba que ya me había zafado de mis escoltas, por lo cual traté,  
de mil modos, de pasar confundido entre la negrada. Me quité la ropa y me  
puse en el mismo centro de ellos, tratando de coger la mayor cantidad de sol  
para ponerme lo más prieto posible (Arenas, 1997, p. 79).  
Aqui vale ressaltar o ponto de vista centrado no narrador-protagonista, o qual  
testemunha uma série de acontecimentos e procura reverter a situação desfavorável na qual se  
encontra.  
A atitude Mier é semelhante a do personagem picaresco, que é mutante, procura adaptar-  
se às situações mais adversas e convertê-las em seu benefício. Nesse sentido, na continuação  
das aventuras do frei no ‘La Nueva Empresa’, Servando finge ser um escravo dócil e obediente,  
mas o ardil não perdura e ele é desmascarado, como se pode constatar:  
Mas al fin concluyó la lujuria y entonces vino mi gran aprieto, pues quisieron  
los marineros que yo les serviese de intérprete con las negras. Y me las vi más  
negras que las negras, pues de la jeringonza que ellas me decían no entendía  
ni una palabra, y no hallaba qué traducirles a los guachupines. Pero me las  
arreglé para comunicarles siempre lo que ellos querían que les comunicara.  
Pero como no eran mis facciones iguales a las de ellas y muchas de mis  
traducciones se veían negadas o mal confirmadas ante la actitud de la negrada,  
se pusieron los marineros a observarme, hasta que me hice muy sospechoso y  
decidieron encerrarme en una de las celdas del fondo, donde nunca se veía el  
sol. Así que fui emblanqueciendo y ellos, cada vez más sorprendidos y  
rabiosos, se sintieron engañados, [...].Entonces uno de los de más autoridad  
determinó que me echaran al mar (Arenas, 1997, p. 81-82).  
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O episódio reveste-se de uma forte carga humorística porque o personagem obtém uma  
certa vantagem em função do ofício do qual se encarrega, o de intérprete. No entanto, o referido  
ofício baseia-se numa impostura, pois o frei desconhece a língua dos escravos, fato que  
acarretará o seu desmascaramento. Além disso, o “embranquecimento” do frei é o ápice da cena  
e vale como uma metáfora da revelação da verdade, pelo esclarecimento daquilo que se  
encontrava oculto.  
No universo da picaresca clássica os protagonistas estão sempre envolvidos em  
trapaças, enganos, roubos. Aliás, ludibriar os demais é um dos principais recursos utilizados na  
solução de problemas e obstáculos.  
No fragmento mencionado, merece destaque o caráter "protéico" do frei, que logra  
adaptar-se rapidamente a qualquer situação. Da mesma forma que o pícaro clássico, ele  
consegue reverter situações desfavoráveis em seu benefício, mas tal estado não é permanente  
porque, invariavelmente, sucede algum novo fato que provoca a revelação de seu ardil e o  
conseqüente desmascaramento.  
Dessa maneira, é flagrante a retomada de certos procedimentos da picaresca clássica  
pela narrativa de frei Servando, como no exemplo citado, no qual ele engana os marinheiros, é  
descoberto e punido, sendo obrigado a tomar novos rumos e iniciar novas aventuras.  
Ao parodiar a estrutura episódica e o modo de atuação dos pícaros, o romance de Arenas  
ressalta que o frei dominicano possui, dentre outras tantas qualidades, o mérito de também  
apresentar um comportamento regido pela picardia. Não obstante, tal picardia não compromete  
o estatuto heroico que o frei vai assumindo com o desenrolar da narrativa, e é somente mais um  
dos tantos atributos que acentuam o caráter multifacetado do frei como herói romântico. A  
reivindicação do seu heroísmo fundamenta-se, também, nos seus contornos de herói às avessas.  
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Revista Coletivo Cine-Fórum RECOCINE | v. 2 - n. 1 | jan-abr | 2024 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REFERÊNCIAS  
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organização, edição do texto em espanhol, notas e estudo crítico de Mario M. González;  
tradução de Heloisa Costa Milton e Antonio R. Esteves; revisão da tradução de Valeria De  
Marco. São Paulo: Ed. 34, 2005.  
ARENAS, Reinaldo. El mundo alucinante. Una novela de aventuras. 2. ed., Barcelona:  
Tusquets Editores, 1997.  
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio  
de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.  
BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix,  
1978.  
ECO, Umberto. Pós-escrito a “O nome da Rosa”. Tradução de Letizia Zini Antunes e Álvaro  
Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.  
GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol  
e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.  
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa:  
Edições 70, 1989.  
QUEVEDO, Francisco de. El Buscón. Org. Américo Castro. Madrid: Espasa-Calpe, 1960.  
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