Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | DOI: 10.63418/rccf.v3i1.88  
Submetido em: 23/03/2025 Aceito em: 01/04/2025  
Ana Paula Almeida  
RETOMADAS E ESPELHAMENTOS DE ALGUNS ELEMENTOS  
Mendes  
DO CONTO “O COBRADOR” PELO ROMANCE O MATADOR  
Mestre em Letras no  
programa de Pós-  
Graduação em Letras da  
Universidade Estadual de  
Mato Grosso do Sul –  
UEMS.  
RESUMO  
Este artigo tem como principal objetivo analisar trechos de dois textos da literatura brasileira  
contemporânea, o primeiro é o conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, e o segundo, o livro  
O matador, de Patrícia Melo. Ambas as obras apresentam tema e estilo muito semelhantes.  
São narrativas que tratam do tema da violência urbana, expondo o lado cruel do ser humano  
em atos de barbárie. Os textos foram escritos de maneira bastante direta e objetiva,  
aproximando seus autores quanto aos seus estilos. A partir da compreensão da ideia de  
intertextualidade, que foi elaborada pela pesquisadora Julia Kristeva, em 1966, tendo como  
base os estudos do filósofo Mikhail Bakhtin, discutiremos as diferentes aproximações que  
podem acontecer entre textos. Centrando, então, a nossa atenção para a técnica da mise en  
abyme, que se popularizou com o escritor André Gide, no início do século XX, usaremos  
como nosso principal eixo teórico o livro El relato especular, de Lucien Dällenbach (1991),  
complementado por estudos críticos de Alonso (2017, 2024), Carvalho (1983), Ginzburg  
(2010), Goulet (2006), Labeille (2011) e Nitrini (2021). O objetivo é identificar e analisar a  
presença da referida técnica na relação de encaixe e espelhamento que podem acontecer  
entre obras distintas ou dentro de um mesmo texto. Em nossa análise, a investigação se deu  
entre as duas obras supracitadas e, com ela, comprovamos que a mise en abyme tem a  
capacidade de proporcionar uma experiência singular, ampliando aspectos das duas  
narrativas que selecionamos para este artigo. Além disso, também pode ser fonte de pesquisa  
em textos que estão surgindo em nossa literatura atualmente, assim como em escritos que já  
foram publicados há mais tempo, abrindo a possibilidade de novos estudos. Dessa maneira,  
fica evidenciada a sua versatilidade e relevância nos estudos contemporâneos de literatura.  
Altamir Botoso  
Doutor em Letras na área  
de Teoria Literária e  
Literatura Comparada pela  
Unesp, campus de Assis  
SP. Docente do curso de  
Letras/Espanhol e do  
Mestrado em Letras na  
Universidade Estadual de  
Mato Grosso do Sul –  
UEMS.  
Palavras-chave: Mise en abyme. O cobrador. O matador. Intertextualidade. Literatura  
comparada.  
REAPPROPRIATIONS AND MIRRORINGS OF SOME ELEMENTS  
FROM THE SHORT STORY O COBRADOR IN THE NOVEL O  
MATADOR  
ABSTRACT  
The main objective of this article is to analyze excerpts from two texts of contemporary  
Brazilian literature. The first is the short story “O cobrador” by Rubem Fonseca, and the  
second is the novel O matador by Patrícia Melo. Both works share very similar themes and  
styles. These narratives address the issue of urban violence, exposing the cruel side of human  
nature through acts of barbarism. The texts are written in a direct and objective manner,  
bringing their authors closer in terms of style. Based on the concept of intertextuality,  
developed by researcher Julia Kristeva in 1966 and grounded in the studies of philosopher  
Mikhail Bakhtin, we will discuss the various connections that can occur between texts. Our  
focus will then shift to the technique of mise en abyme, which originates from the early  
twentieth-century writings of André Gide. As our main theoretical framework, we will  
employ El relato especular by Lucien Dällenbach (1991), complemented by critical studies  
by Alonso (2017, 2024), Carvalho (1983), Ginzburg (2010), Goulet (2006), Labeille (2011),  
and Nitrini (2021). The objective is to identify and analyze the presence of this technique in  
the relationships of embedding and mirroring that can occur between distinct works or within  
a single text. In our analysis, we examine the interaction between the two aforementioned  
works, demonstrating that mise en abyme has the capacity to create a highly distinctive  
reading experience, enhancing key aspects of the selected narratives. Furthermore, this  
technique can serve as a valuable object of study not only in emerging literary texts but also  
in works published in previous periods, thus opening possibilities for further research. In  
this way, its versatility and relevance within contemporary literary studies become evident.  
Este artigo passou por  
avaliação por pares cega e  
software anti-plágio.  
LICENÇA ATRIBUIÇÃO NÃO  
COMERCIAL 4.0 INTERNACIONAL  
CREATIVE COMMONS CC BY-NC  
Keywords: Mise en abyme. O cobrador. O matador. Intertextuality. Comparative literature.  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
INTRODUÇÃO  
O tema a respeito da violência está presente nos debates sociais ao longo do  
tempo. Seja como uma bestialidade, que pode ocorrer entre seres humanos de forma  
individual, muito comum no cotidiano urbano contemporâneo, seja em conflitos mais  
complexos e amplos, que envolvem nações e afetam milhares de pessoas.  
Por ser algo tão relevante e de recorrência constante em nossas vidas, sua  
representação na literatura é incontestável e pode ser comprovada em um número  
grande e variado de textos com tal aproximação temática. As ficções cuja violência é  
fonte de inspiração acompanham a humanidade há muitos séculos. Exemplos não  
faltam para comprovar tal afirmação. Desde A Ilíada, que foi escrita por volta do século  
VIII a.C., pelo poeta grego Homero (850 a.C. aproximadamente), com sua longa e  
sangrenta guerra, repleta de cenas de violência, passando pelas obras de William  
Shakespeare (1564 1616), e sua mundialmente famosa peça Hamlet, com a trama do  
assassinato do rei, na dupla traição do irmão, tio do protagonista, e da rainha, mãe do  
jovem, até diversas outras peças de sua autoria. Além disso, representações da  
violência encontram-se em romances policiais, em ficções do passado e da  
contemporaneidade e, podemos afirmar que, em qualquer narrativa, certamente  
haverá um ou mais atos violentos durante o desenvolvimento do seu enredo.  
Na literatura brasileira não é diferente. Em um ensaio denominado “A violência  
na literatura brasileira: notas sobre Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães  
Rosa”, no qual o tema da violência surge como referência interpretativa, Jaime  
Ginzburg (2010) aborda o assunto em três obras dos autores citados no título do  
referido artigo. Para esse estudioso, “A história brasileira é intensamente caracterizada  
pela presença da violência em processos sociais” (2010, p. 7).  
Em “A causa secreta”, de Machado de Assis, em São Bernardo, de Graciliano  
Ramos e, ainda, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Ginzburg identifica e  
analisa a violência que perpassa os textos e as ações das personagens. Seja através de  
uma agressividade entre seres humanos, seja voltada contra os animais, como no conto  
9
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
de Machado de Assis, cujo ato de crueldade analisado pelo autor do ensaio ocorre  
contra um rato, o texto aborda a presença de atos violentos em obras literárias  
brasileiras publicadas em momentos diferentes da história, com uma tendência a se  
tornar mais constante nas publicações contemporâneas. Para o estudioso mencionado,  
“a acentuação do interesse pelo assunto é motivada pela produção literária recente, de  
1990 em diante, em que os modos de inserção da violência se diversificam e se  
multiplicam nas artes brasileiras” (Ginzburg, 2010, p. 10).  
Em meados do século XX, surge, no cenário nacional, o escritor Rubem Fonseca  
(1925-2020). As obras desse romancista expõem em seu cerne tramas cujos cenários são  
repletos da realidade imposta pela violência urbana. A atuação profissional do autor,  
que foi comissário de polícia, talvez explique a sua inclinação para a temática e o  
sucesso que suas produções alcançaram, justamente por aproximar a ficção de uma  
realidade testemunhada no dia a dia da grande maioria dos leitores. Entre contos e  
romances, a vasta produção do escritor mineiro ocorreu entre o início dos anos de 1960  
até 2018, dois anos antes de sua morte.  
Em 1979, Rubem Fonseca publica o conto “O cobrador”, uma das obras que  
serão analisadas neste artigo. No texto, o protagonista, em ato de total desequilíbrio,  
começa a cobrar do mundo aquilo que considerava seu por direito. Para tal  
empreitada, sai pela cidade cometendo atos de extrema violência contra várias  
pessoas, escolhidas aleatoriamente, pelo simples e infeliz motivo de terem cruzado seu  
caminho. A primeira vítima desse protagonista cruel é um dentista que ousou cobrá-  
lo por um serviço dentário prestado. A partir desse episódio, o criminoso deflagra seu  
ódio, afirmando que "dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo  
me devendo" (Fonseca, 2010, p. 9).  
Anos mais tarde, um outro aparecimento no cenário literário nacional chama a  
atenção, o da escritora Patrícia Melo (1962-). Nascida em Assis-SP, lança, em 1994, seu  
primeiro livro chamado Acqua Toffana. Abordando, assim como Fonseca, aspectos  
abjetos do ser humano, ela traz, nessa primeira obra, o percurso de mentes violentas e  
10  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
violentadas. A partir daí, também passa a ser conhecida como uma autora cuja  
temática percorre a violência, principalmente urbana. Nesse sentido, assemelha-se de  
tal maneira ao seu precursor por quem ela sempre afirmou ter grande admiração.  
Apesar disso, ao longo de sua carreira, imprimiu um estilo próprio, admirado por uns  
e criticado por outros, contudo indiscutivelmente marcante.  
Em 1995, Patrícia Melo publica O matador, que é uma história narrada em  
primeira pessoa, de um jovem "pobre e que tinha uma vida cotidiana regular; até se  
tornar um homem violento, cruel, perigoso e foragido da polícia" (Mendes, 2025, p.  
80). Em entrevista concedida à TV Cultura, em 2012, Melo afirma que Fonseca é um  
parâmetro importante para os escritores de sua geração, situando, de tal maneira, o  
autor mineiro como um grande incentivador de jovens escritores.  
Portanto, a partir da apreciação dessas duas obras, “O cobrador” e O matador, e  
trazendo como base teórica considerações sobre a mise en abyme, a partir dos estudos  
do teórico suíço Lucien Dällenbach, em seu livro El relato especular1 (1991),  
procuraremos traçar, no artigo que segue, a presença e os efeitos dessa técnica que dão  
aos textos perfis únicos e criam uma peculiar relação entre eles. A justificativa para tal  
abordagem sobre o assunto se dá, justamente, por sua intensa presença em obras  
contemporâneas, assim como a possibilidade de ser percebida em obras escritas em  
tempos remotos, acarretando (re)visitas a textos já amplamente analisados.  
Em O matador, verifica-se uma retomada de uma personagem presente no conto  
“O cobrador”, instaurando uma espécie de espelhamento entre essas duas narrativas  
e, dessa forma, é possível afirmar que a narrativa de Patrícia Melo transforma-se em  
um “caleidoscópio”,  
[...] onde fragmentos móveis do vidro colorido, refletindo-se sobre  
espelhos multifacetados, produzem um número infinito de imagens e  
cores variadas, [...] as cenas e imagens do mundo íntimo do sujeito  
desdobram-se e multiplicam-se em fragmentos e partes esfaceladas,  
detalhes metonímicos que se justapõem, formando não menos vasto  
número de combinações. (Carvalho, 1983, p. 25)  
1 Título original em francês: Le récit spéculaire: essai sur la mise en abyme.  
11  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
 
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
Ressaltamos que o trecho citado refere-se à análise de Angústia, de Graciliano  
Ramos, mas tais observações também são pertinentes em relação ao texto de Patrícia  
Melo, uma vez que a retomada da personagem protagonista do conto de Fonseca por  
essa escritora propicia uma ampliação da sua atuação ao ser deslocado para uma outra  
estrutura textual. Isso permite observar inúmeras nuances e aspectos relativos à  
violência que se encontravam presentes na narrativa fonsequiana e que ganham novos  
contornos e dimensões na obra da autora de Jonas, o copromanta (2008).  
INTERTEXTUALIDADE E MISE EN ABYME  
Os estudos que abordam as relações textuais são bastante frequentes. Repletos  
de conceituações, eles tentam dar conta de explicar as possíveis relações entre  
diferentes textos. Ousamos afirmar que, no universo acadêmico, uma das definições  
mais conhecidas que trata sobre o tema é a cunhada por Julia Kristeva, em 1966, em  
seu artigo “Word, dialogue, and novel [“A palavra, o diálogo e o romance”]”,  
publicado na revista francesa Critique, no ano posterior. Tratando a respeito da  
intertextualidade, a tese da pesquisadora se deu a partir do que foi abordado, a priori,  
pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895 - 1975).  
No célebre trecho de autoria de Kristeva, esta semióloga búlgara estabelece que  
"todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e  
transformação de um outro texto" (2005, p. 68). A estudiosa chegou a tal definição,  
entre outras coisas, a partir da teoria do dialogismo, de Bakhtin, que "foi um dos  
primeiros formalistas russos que procuraram substituir a segmentação estática dos  
textos por um modelo segundo o qual a estrutura literária se elabora a partir de uma  
relação com outra" (Nitrini, 2021, p. 158). Dessa forma, ele retirou o texto de uma  
posição fixa, estática, e o colocou em uma situação de relação com o sujeito que o lê e  
com outros textos. Essa relação dialética pode se dar em várias esferas dos escritos. A  
ligação pode ser a partir de uma citação direta, incorporando as palavras exatas do  
autor original ao novo texto. Ela também pode se estabelecer indiretamente, trazendo  
12  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
ideias e conceitos sem, contudo, repetir termos. Em narrativas, esse ajuntamento  
também pode se dar através da aproximação de elementos. Dessa maneira, ambos os  
textos passam a ter em comum um ou mais componentes do outro. Duas obras podem  
compartilhar personagens, por exemplo. Infere-se, portanto, que esse diálogo só é  
possível porque o escritor posterior, ao elaborar seu material, trouxe consigo suas  
próprias impressões de leitura.  
Assim, podemos afirmar que não há texto isento da subjetividade de seu autor.  
Sua experiência de leitura certamente está presente, de forma explícita ou não. Esse  
vínculo entre textos, no início do século XX, passou a ser percebido a partir de uma  
nova perspectiva. Com o escritor francês André Gide (1869-1951) surge a ideia da mise  
en abyme, de uma narrativa dentro de outra, quando dentro de uma obra de um autor  
existe uma narrativa em segundo plano (ou em abismo), que retoma elementos da  
narrativa primeira ou do texto-tutor, como pondera Lúcia Helena Carvalho (1983, p.  
6-7):  
Com efeito, caracterizando-se como elemento de duplicação interior –  
a história dentro da história , a construção em abismo se oferece como  
procedimento retórico extremamente válido na produção de  
interessantes jogos de reflexos dentro da narrativa. Da mesma forma  
que os espelhos convexos funcionam na pintura flamenga,  
redimensionando o espaço frontal e limitado da tela, no romance,  
histórias encaixadas no discurso-tutor desdobram de maneira às vezes  
vertiginosa, os episódios da ação central, abrindo ao processo de  
significação uma dimensão insondável.  
Ainda em conformidade com Carvalho (1983, p. 7), coube a André Gide o  
mérito de provar que o emprego da construção em abismo ultrapassava o emprego  
que William Shakespeare utilizara na maioria de suas peças (trinta e quatro delas), no  
século XVI, praticando intencionalmente esse procedimento de duplicação em suas  
obras Le traité du Narcisse (1891), La tentative amoureuse (1893), Les faux-monnayeurs  
(1925).  
No percurso de escrita de seu famoso romance Os moedeiros falsos (2022), Gide  
criou uma personagem chamada Édouard, que também é escritor e está escrevendo  
13  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
um livro que recebe o mesmo nome da narrativa da qual ele participa: Os moedeiros  
falsos. Essa conexão "em abismo" conforme nomeou o próprio Gide, pode ser  
considerada como ponto de partida para os estudos que, atualmente, recebem o nome  
de mise en abyme.  
A técnica de nome francês e para a qual não há uma tradução ideal em língua  
portuguesa, pode ser compreendida como uma espécie de encaixe narrativo. Nessa  
dinâmica, temos relações que vão desde um texto "dentro" de outro até a retomada de  
personagens de um mesmo autor dentro de uma obra ou de outras posteriores. Como  
exemplificação dessa técnica, além da própria obra de André Gide, citamos mais uma  
vez o texto dramático Hamlet, de Willian Shakespeare. Há, na peça do dramaturgo  
inglês, a criação de uma outra encenação, cujo tema remete ao mote do texto  
encaixante. A história do espetáculo repete a tramoia perpetrada por aqueles que  
assassinaram o rei, de forma que os culpados se surpreendem e, involuntariamente,  
mostram sua culpa.  
Além desse aspecto, as relações podem ocorrer não só por encaixe, mas através  
de espelhamentos. E esse vínculo, que pode ser bem mais sutil, abre diversas  
possibilidades interpretativas, pois ao espelhar uma obra acaba trazendo, às vezes de  
maneira clara, às vezes não, algo de outra produção, ampliando os sentidos e  
significados que estavam expressos nesse texto anterior.  
O ensaísta suíço Lucien Dällenbach (1991) estabeleceu um estudo, a partir das  
notas e diários de André Gide, a respeito da mise en abyme, que até os dias atuais pode  
ser considerado o de maior relevância. Ele classificou e organizou a teoria de maneira  
que sua pesquisa se tornou referência obrigatória aos interessados. Em sua definição  
primeira, ele diz que “é a mise en abyme todo espelho interno no qual se reflete o  
conjunto do relato por reduplicação simples, repetida ou paradoxal2 (1991, p. 49,  
tradução nossa).  
2 Trecho do livro que foi traduzido para o español e que serviu de base para elaboração desse artigo: “es la mise  
en abyme todo espejo interno en que se refleja el conjunto del relato por reduplicación simple, repetida o  
especiosa.”  
14  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
 
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
Como reduplicação simples, podemos compreender a inserção de uma obra  
dentro da outra, quase como uma miniatura. E como o próprio nome já sugere, se trata  
de um reflexo menos complexo de perceber e interpretar. A segunda possibilidade  
reflexiva seria a mise en abyme repetida. Nesse caso, o movimento de repetição  
assemelha-se ao anterior, isso é, ao simples, contudo ocorre de maneira infinita, num  
looping constante de encaixes. E, finalmente, a última classificação feita por Dällenbach  
que é a paradoxal. A compreensão desse espelhamento, nesse caso, é um pouco mais  
complexa, visto que ocorre quando “o fragmento inclui a obra que, inicialmente,  
também o inclui; e acaba criando um amálgama e complexificando sobremaneira a  
interpretação” (Mendes, 2025, p. 28).  
Com essa designação, que remete não só a um encaixe propriamente dito, mas  
também a um reflexo, o espelho surge como um objeto que ilustra bem e serve para  
melhor compreensão e exemplificação da técnica e de seu uso. A partir de então,  
Dällenbach, na sequência de seus estudos, elabora uma tese com três possibilidades de  
emprego da mise en abyme.  
A primeira é a mise en abyme de enunciado ou ficcional, que reflete o conteúdo  
original como uma citação ou um resumo e, por esse motivo, é intertextual e  
redundante. Ela pode reduzir ou ampliar as possibilidades semânticas do texto, algo  
que ele não poderia fazer por si só.  
Entretanto, como a mise en abyme de enunciado ou ficcional não pode acontecer  
simultaneamente ao texto, isto é, o fragmento refletido necessariamente precisa  
ocorrer em momento diferente, a questão temporal também precisou ser analisada.  
Desse modo, surgiu uma classificação em que o teórico suíço a dividiu como  
“prospectiva”, cujo caráter é profético, trazendo à luz o que ainda vai acontecer.  
Também há a “retrospectiva” com uma ideia de retomada do passado, e por esse  
motivo, destituída de novidade quanto aos fatos do texto. E, finalmente, a  
“retroprospectiva” que engloba ambas as anteriores, de forma a apresentar maior  
15  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
relevância para interpretação do texto que emprega este último tipo de construção em  
abismo.  
A segunda possiblidade descrita pelo estudioso é a mise en abyme de enunciação  
ou narrativa. Nesse caso, o que se apresenta é o ato de criação do texto narrativo, como  
uma mostra dos bastidores dessa produção, tornando o leitor testemunha da gênese  
da obra, praticamente como um coparticipador do processo.  
E, a terceira e última possibilidade denominada mise en abyme do código ou  
metatextual é mais voltada para “um debate estético acerca de ideais artísticos”  
(Alonso, 2017, p. 63). Nesse caso, não há somente o encaixe ou reflexo de uma estrutura  
do objeto artístico em outra ou em si mesma, mas uma espécie de referência às suas  
convenções em um debate interno.  
Utilizando o estudo do pesquisador suíço como ponto de partida essencial e  
fundamental para os estudos da técnica, novos pesquisadores enriqueceram o debate  
trazendo perspectivas de interpretações da obra literária, com a mise en abyme sendo  
compreendida a partir de diferentes pontos de vista. As novas concepções, por  
exemplo, abordam reflexos mais complexos, cujos espelhos não são mais suficientes  
para explicá-la. Sendo, portanto, o prisma um objeto mais adequado. Essa tese, que  
troca o objeto refletor, foi desenvolvida pela pesquisadora Véronique Labeille (2011),  
em seu artigo “Manipulation de figure. Le miroir de la mise en abyme”.  
Há, ainda, estudos que colocam o próprio autor da obra “em abismo”. De Alain  
Goulet, o artigo “L’auteur mis en abyme: Valery e Gide” traz justamente esse autor  
que deseja compartilhar suas angústias e emoções. Assim, ele se mostra e se vê, num  
movimento narcisístico, bastante presente nas produções contemporâneas.  
A CONSTRUÇÃO EM ABISMO: REVERBERAÇÕES DO CONTO DE RUBEM  
FONSECA NO ROMANCE DE PATRÍCIA MELO  
Em ambos os textos literários que vamos analisar neste artigo encontramos  
diversas aproximações que podem ser compreendidas a partir da teoria da mise en  
16  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
abyme. Podemos iniciar destacando a semelhança que há entre os títulos das obras.  
Ambos são formados pelo artigo masculino “o”, seguido de um substantivo cujo  
sufixo “or” os conecta.  
Sabemos que, por definição, o sufixo é um morfema que é acrescentado ao final  
de uma palavra com o objetivo de modificá-la. Essa inserção muda o termo original  
semanticamente. Assim quando acrescentamos o sufixo “ão” a um termo, por  
exemplo, normalmente passamos a ter uma palavra com ideia de aumentativo  
(menino passa a ser meninão). Nos títulos das obras, o sufixo “or” contempla uma  
ideia de agente, de alguém que comete uma ação.  
No conto de Rubem Fonseca, o título expressa exatamente a ação que o  
protagonista inicia em seu momento de revolta contra tudo e contra todos. Ele passa a  
ser o cobrador das dívidas que considera ter direito de receber dos demais. Já no livro  
de Patrícia Melo, por sua vez, a ação do matador é desencadeada por uma série de  
eventos que o colocam nessa posição ativa. Em ambas, contudo, os fatos das narrativas  
correspondem aos títulos das obras e antecipam a dinâmica que o leitor encontrará ao  
ler cada uma delas.  
O fato de as narrativas acontecerem em grandes metrópoles do Brasil, que  
infelizmente são conhecidas pelo alto nível de violência urbana, é um espelhamento  
que também não pode ser ignorado. Os dois protagonistas, que são também os  
narradores, convivem nessa sociedade desigual e, de certa maneira, têm suas ações  
pautadas nesse sistema. Ambos são jovens, homens, pobres e se sentem injustiçados  
ou desvalorizados.  
Logo, entre as duas narrativas, o tema da violência surge espelhado. A  
movimentação dos protagonistas nesse limbo de terror, percorrendo espaços e  
deixando impressa a sua maldade está presente nos dois textos selecionados como  
corpus para este artigo. São duas narrativas que mostram claramente lados  
desprezíveis de seres humanos. A crueldade, a falta de empatia pelo próximo, a ação  
violenta sem considerar as consequências são registradas com uma escrita direta,  
17  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
objetiva e sem floreios. Independentemente disso, Fonseca e Melo foram capazes de  
descrever as relações interpessoais de seus protagonistas, dando a cada um deles uma  
subjetividade própria, apesar da barbárie, que os circunda.  
Ademais dessas aproximações, certamente a mais interessante delas ocorre com  
a presença de uma mesma personagem em ambas as produções. Em “O cobrador”, a  
primeira vítima do protagonista é um dentista chamado Dr. Carvalho. Logo nas  
primeiras linhas do conto, o jovem procura por um serviço dentário e, como  
normalmente acontece, o profissional cobra pelo trabalho realizado. Em um ato de  
revolta, ele se recusa a pagar e, além disso, atira no joelho do profissional. Ele sai do  
consultório deixando a vítima com vida, porém com sequelas em uma de suas pernas.  
A passagem dessa personagem que sofre a primeira ação violenta no conto de  
Fonseca é breve. No texto de 1979 não há maiores informações a respeito do Dr.  
Carvalho e do seu futuro. Entretanto, somos conhecedores de informações adicionais  
sobre essa personagem porque ela (re)surge na narrativa de Patrícia Melo, publicada  
anos depois.  
O conto de Fonseca tem início com o encontro do protagonista e do dentista,  
que acabará sendo vítima da violência daquele:  
Na porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho,  
Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está  
atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu  
e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns  
quarenta anos, de jaleco branco.  
Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo  
de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás  
estava doendo muito. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como  
é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.  
(Fonseca, 2010, p. 8, grifo do autor)  
Em O matador, esse mesmo Dr. Carvalho, que antes morava na cidade do Rio de  
Janeiro, agora vive em São Paulo. Ele conta parte da sua história para Máiquel, que é  
o personagem central do livro de Patrícia Melo, justificando sua maneira de pensar em  
18  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
relação aos problemas da criminalidade, e assim começa a relação de troca de serviços  
entre os dois, conforme se pode depreender do fragmento que transcrevemos abaixo:  
O DR. CARVALHO ERA MANCO, tinha levado um tiro na perna  
quando morava no Rio de Janeiro. Arranquei o dente de um infeliz e  
ele não queria pagar, veja só, fui cobrar e levei um tiro no joelho, tive  
sorte de não morrer, ele disse. A violência está cada vez pior. [...]  
Fiquei com vergonha de abrir a boca, meus dentes todos fodidos, o dr.  
Carvalho, com seu jaleco branco, seus sapatos brancos, suas mãos  
cheirando a Lux Luxo, ia ficar enojado ao ver toda aquela podridão.  
Foi você que matou o Suel? [...]  
Vou te dizer uma coisa, rapaz, você tem os dentes ruins, eu sou  
dentista, eu tenho um problema e você tem os dentes ruins. Podemos  
nos ajudar. Você me ajuda, eu te ajudo. Eu trato os seus dentes de graça  
e você faz alguma coisa por mim. Você concorda?  
Eu quero ter dentes bons.  
Matar um desgraçado, é isso que eu quero de você. (Melo, 2008, p. 29-  
31)  
O “serviço” que Dr. Carvalho quer que Máiquel realize é a execução do homem  
que estuprou sua filha, Gabriela. Verifica-se, portanto, que a história do cobrador se  
amplia, reveste-se de novos contornos e ramifica e redimensiona as ações dessas duas  
personagens, já que o Dr. Carvalho concebido por Patrícia Melo tem esposa, uma filha,  
é rico e pode pagar para obter uma justiça que não conseguiu pelos meios legais e  
Máiquel espelha e alarga a atuação do cobrador, transformando-se em um assassino  
de aluguel, e inclusive realiza o crime encomendado pelo dentista.  
Da mesma maneira que o protagonista do texto fonsequiano, o narrador  
Máiquel entra em seu consultório em busca de ajuda profissional, pois também precisa  
de serviços dentários. Por esse motivo, ele conhece o Dr. Carvalho, que em conversa  
informal conta sua experiência traumática, quando ainda morava na cidade do Rio de  
Janeiro, ao ser alvejado no joelho por uma pessoa que esteve em seu consultório:  
“Arranquei o dente de um infeliz e ele não queria pagar, veja só, fui cobrar e levei um  
tiro no joelho, tive sorte de não morrer” (Melo, 2008, p. 29).  
Se no conto de Fonseca, o cobrador fere Dr. Carvalho, mas o deixa vivo, no  
romance de Melo, depois de Máiquel efetuar uma série de assassinatos pagos por  
19  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
eminentes figuras da sociedade, como comerciantes e até mesmo policiais, acaba  
cometendo um erro e mata um jovem inocente, filho de uma família influente. Por isso  
começa a ser perseguido e é abandonado por todos aqueles que fingiam ser amigos, e  
que assim agiam somente para ter os seus serviços e solucionar problemas como o  
roubo de veículos ou questões pessoais, como Dr. Carvalho que quer eliminar o  
estuprador da filha, exercendo uma espécie de vingança por meio de um assassino  
contratado para tal tarefa.  
Podemos perceber claramente a presença da mise en abyme nesse encaixe de uma  
mesma personagem em ambas as obras. Só é possível saber o futuro do doutor  
Carvalho se fizermos a conexão com as informações apresentadas na obra posterior.  
Da mesma maneira, só se compreende os detalhes da violência sofrida pelo dentista se  
fizermos o mesmo movimento de ligação entre os textos.  
Em “O cobrador”, a ação que desencadeia a violência é a cobrança do Dr.  
Carvalho pelos serviços prestados ao jovem de aparência franzina que adentrou seu  
consultório com dor de dente:  
Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do  
boticão. A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso. São quatrocentos  
cruzeiros.  
Só rindo. Não tem graça, meu chapa, eu disse.  
Não tem o quê?  
Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.  
Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um  
homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes  
dos fodidos. [...] (Fonseca, 2010, p. 8)  
A cena violenta que se desencadeia em “O cobrador” transcorre no consultório  
do dentista e culmina com o tiro disparado em uma parte da perna do Dr. Carvalho:  
[...] Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota  
de meu cuspe bateu na cara dele que tal enfiar isso no teu cu? Ele  
ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei  
a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no  
chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem bolas, eles pipocavam  
e explodiam na parede. [...] O dentista me olhava, várias vezes deve ter  
20  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse  
isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.  
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só  
cobro!  
Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.  
(Fonseca, 2010, p. 8-9).  
Na narrativa curta de Rubem Fonseca, Dr. Carvalho sobrevive e o cobrador  
segue sua trajetória deixando um rastro de morte em seu caminho. De maneira  
semelhante, Máiquel também mata vários personagens, inclusive sua esposa Cledir.  
Quase no final da obra de Melo, ele se dá conta de que fora usado por aqueles que  
contratavam seus serviços e se diziam seus amigos:  
[...] Eu não podia nem chegar perto da Ombra, do meu apartamento,  
polícia por todo lado. Perdi tudo. [...] Dinheiro é merda. Eu não me  
importava, agora o ódio, sim, eu não queria perdê-lo. Eu o alimentava  
todo dia, da melhor forma possível. Fora o meu ódio, eu era um ser  
repugnante que nem aqueles caras que eu odiava. O dr. Carvalho,  
aquele filho-da-puta, e ele ainda me expulsou da casa dele, aos berros,  
cachorro sarnento, ele gritava. Ele encabeçava a lista. Não, o Santana  
encabeçava a lista. Eu não podia mais parar. De repente eu tinha  
entendido tudo, aquela história, o lado de cá e o lado de lá, [...]. Eu era  
o revólver desses caras. A paz. Eles têm que ter um revólver porque  
todo mundo quer roubar o videolaser deles. A Miami deles. O estupro  
das filhas deles. O medo deles. A segurança deles. Eles não têm paz,  
eles diziam isso toda hora, não temos paz. Eu era o matador, era isso.  
Paz. Agora que a merda estava fedendo, eles estavam querendo jogar  
o revólver no rio, queriam acabar com as provas. Usar e jogar fora,  
como a gente vê escrito nas embalagens. (Melo, 2008, p.183-184)  
O sentimento de ódio de Máiquel a todos aqueles que o traíram ou que agora  
evitam manter qualquer espécie de contato com ele é muito similar ao que sente o  
cobrador: “[...] Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários,  
médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. [...]”  
(Fonseca, 2010, p. 8). Essas personagens que no conto fonsequiano são designadas por  
3
Trata-de uma organização da qual Máiquel passou a fazer parte, para dar uma aparência lícita aos “trabalhos”  
efetuados para os seus clientes: “Ombra – Serviços de Segurança e Vigilância Patrimonial S. C. Ltda., eu gostava  
daquele nome, gostava também da marca, um círculo com um ponto no meio, um alvo, o Santana é que tinha  
bolado aquilo. A Ombra ficava a vinte quadras do meu apartamento, na rua Ferreira Soares, um lugar movimentado  
de Santo Amaro, cheio de escritórios comerciais e lojas.” (Melo, 2008, p. 123)  
21  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
 
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
profissões, em O matador recebem nomes, são individualizadas por meio de  
características físicas, posses e os problemas que terceiros lhes causam e precisam ser  
eliminados. Na cena crucial em que Máiquel mata Dr. Carvalho, até mesmo o sintagma  
– “[...] naquela barriga grande cheia de merda” − presente no texto de Rubem Fonseca  
(2010, p. 9) para se referir ao dentista é reproduzido quase ipsis litteris no romance da  
autora de Mulheres empilhadas (2019):  
Dr. Carvalho pulou da cama assim que me viu, tentou chegar perto do  
telefone. Fui mais rápido, arranquei o fio da tomada. A mulher dele no  
chuveiro, eu ouvia o barulho. Máiquel, ele disse, vá com calma.  
Cuidado. Cuidado a gente tem para atravessar a rua, eu disse, eu não  
vou atravessar a rua. Dr. Carvalho mancava de um lado para o outro,  
o roupão branquinho. Tire o roupão, eu disse, apontando a arma, não  
quero sujar o seu roupão branquinho, ele não merece, o roupão. Dava  
gosto ver o Dr. Carvalho, pelado, mancando, barrigudo, se cagando de  
medo, dava gosto ver. Apontei e acertei bem no meio daquela barriga  
cheia de merda. (Melo, 2008, p. 188-189, grifo nosso)  
O dentista, que aparece brevemente nos parágrafos iniciais de “O cobrador”,  
ganha relevo e destaque em O matador, tornando-se o responsável por inserir Máiquel  
em seus círculos de amizade e, dessa maneira, conseguindo novos clientes para o  
jovem que vai se tornar um matador de aluguel, disposto a fazer um tipo de  
“higienização” de marginais que incomodavam pessoas ricas e poderosas e que não  
queriam ser incomodadas ou prejudicadas por roubos, violências sexuais ou qualquer  
tipo de problema que pudesse interferir na sua rotina de capitalistas abastados e  
dispostos a pagar pela paz que tanto ansiavam.  
Todos os excertos comentados acima comprovam a versatilidade do emprego  
da técnica da mise en abyme, um recurso que tem tido um largo emprego em ficções  
contemporâneas. Além do uso bastante conhecido de narrativas que se encaixam em  
outra maior, é possível observar a sua utilização no que tange a personagens, quando  
se nota que elas nascem de outras, por intermédio da “persistência de determinados  
perfis ao longo do tempo, perfis que se desdobram e se ampliam, ligando dessa forma  
a obra precedente [...]” (Vidal, 2024, p. 9) a outras obras, seja de um mesmo autor, ou  
22  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
como no caso exposto neste artigo, quando Patrícia Melo concebe uma personagem a  
partir de elementos encontrados em uma história anterior, ou seja, o conto de Rubem  
Fonseca.  
A presença dessa mesma personagem em dois espaços narrativos distintos  
confere uma singularidade à leitura. Essa mise en abyme encaixa o Dr. Carvalho em uma  
nova realidade na cidade onde vivia e, de certa maneira, pode explicar seu perfil cruel  
na obra posterior, visto ele ser o grande incentivador e patrocinador da carreira do  
matador, principalmente no início. Tanto a violência sofrida por ele, quanto a sofrida  
pela filha, que é violentada, podem servir como justificativa para sua sede de vingança  
e seu senso de justiceiro.  
Todas essas análises, contudo, só podem ser feitas porque a presença dupla foi  
percebida. O mais interessante, entretanto, é saber que as leituras individuais, sem a  
percepção da relação encaixante, não afetam a compreensão das obras. O  
desconhecimento da presença dessa personagem no outro livro não prejudicaria a  
compreensão da sua história nem a sua participação nas narrativas. No entanto, sem  
sombra de dúvida, o emprego da técnica da mise en abyme, que se comprova presente  
em O matador, confere a esse texto uma peculiaridade e uma especificidade que lhe são  
tão particulares e prenhe de significados, uma vez que  
No contexto teórico da mise en abyme, escrever significa reescrever, ato  
que registra a criação continuada, espécie de jogo de espelhos  
responsável pelo aspecto lúdico da literatura. Assim, referências e  
modelos são colocados em cena, dando novos sentidos à apropriação.  
[...] as personagens reaproveitadas viabilizam uma espécie de mosaico  
textual, composto por vários textos e marcado pela pluralidade de uma  
escrita nômade, descentralizada. [...] (Alonso, 2024, p. 72-73)  
O nexo de continuidade entre as personagens do conto e do romance aqui  
estudados enfatiza o diálogo perene das obras literárias, já que a literatura nasce da  
própria literatura, por retomadas, empréstimos e trocas, que mantêm sempre a sua  
renovação e instigam os leitores e críticos a buscarem novos sentidos e interpretações,  
valorizando as produções hodiernas, mas também não esquecendo daquelas oriundas  
23  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
do passado, num movimento eterno e incessante que revitaliza e potencializa as  
criações literárias de todas as épocas.  
CONSIDERAÇÕES FINAIS  
A confecção de um texto literário é um trabalho que envolve talento e,  
certamente, esforço. Todavia, não se restringe a isso, mas também há técnicas que  
permitem ao autor dar características especiais ao seu material e proporcionar uma  
experiência única ao seu leitor.  
Nas duas obras que analisamos nesse artigo, o conto “O cobrador”, de Rubem  
Fonseca e o romance O matador, de Patrícia Melo, temos a possibilidade de ler cada  
uma individualmente. Essa leitura única proporciona o contato com um texto literário  
de qualidade, que cumpre aquilo a que se propõe. Um livro não depende do outro  
para existir ou para fazer sentido, ele não se torna “melhor” ou “pior” pela existência  
do outro.  
O que ocorre, nesse caso, é que a mise en abyme, que os conecta, proporciona um  
ganho ao leitor que a percebe. Isso quer dizer que o universo de cada uma das obras  
se amplia com a presença da técnica que Patrícia Melo usou ao adicionar em seu texto  
dados que o aproximaram da obra de seu precursor e, além disso, o  
(re)aproveitamento de uma personagem, Dr. Carvalho, ampliou as possibilidades do  
texto fonsequiano e alargou os seus horizontes, permitindo um novo olhar sobre a sua  
atuação e a sua participação nos eventos narrados no livro de Melo.  
Afirmamos, de tal modo, que os estudos da técnica da mise en abyme nos  
permitem (re)visitar textos literários que já foram anteriormente concebidos e que  
também podem ser relidos e reavaliados sob novas perspectivas críticas. Assim, o fato  
de se estudar as novas produções que estão pululando em nosso tempo exige também  
um olhar para o nosso passado, para ressaltar os diálogos que os textos  
invariavelmente conformam. Toda essa versatilidade da literatura torna as pesquisas  
a respeito da técnica da construção em abismo não só relevantes, como também  
24  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
extremamente proveitosas, salientando a potência da literatura como um campo de  
pesquisa e reinterpretação constantes.  
REFERÊNCIAS  
ALONSO, Mariângela. O jogo de espelhos na ficção de Clarice Lispector. 1. ed. São  
Paulo: Annablume, 2017.  
ALONSO, Mariângela. Mulheres em abismo: a personagem feminina em Marques  
Rebelo. 1.ed. Curitiba: Appris, 2024.  
CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo: uma interpretação de Angústia, de  
Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1983.  
DÄLLENBACH, Lucien. El relato especular. Tradução: Ramón Buenaventura.  
Madrid: A. Machado Libros S. A., 1991.  
FONSECA, Rubem. O cobrador. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010. E-book.  
GIDE, André. Os moedeiros falsos. Tradução: Débora Isidoro. Caxias do Sul:  
Culturama, 2022.  
GINZBURG, Jaime. A violência na literatura brasileira: notas sobre Machado de  
Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Letterature D'America: Revista  
Trimestrale, Roma, n. 130, p. 5-22, 2010.  
GOULET, Alain. L’auteur mis en abyme: Valery e Gide. Lettres française, UNESP,  
Araraquara-SP, n.7, 2006. p. 39-58. Disponível em:  
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.  
LABEILLE, Véronique. Manipulation de figure. Le miroir de la mise en abyme.  
Figures: Montreal, p. 89-104, 2011. Disponível em:  
en-abyme. Acesso em: 6 jan. 2025.  
MELO, Patrícia. O matador. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.  
25  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás  
REVISTA COLETIVO CINE -FÓRUM  
MENDES, Ana Paula Almeida. As múltiplas possibilidades da mise en abyme em  
um sopro de vida e o matador. Orientador: Prof. Dr. Altamir Botoso. 2025. 116 f.  
Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul,  
sigpos/portal/trabalho-arquivos/download/4052. Acesso em: 25 mar. 2025.  
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica. 3. ed. São Paulo:  
Edusp, 2021.  
SHAKESPEARE, William. Hamlet. São Paulo: Centaur Editions, 2013. E-book.  
VIDAL, Ariovaldo José. Prefácio. In: ALONSO, Mariângela. Mulheres em abismo: a  
personagem feminina em Marques Rebelo. 1.ed. Curitiba: Appris, 2024. p. 9-10.  
26  
Revista Coletivo Cine-Fórum | v. 3 - n. 1 | jan-abr | 2025 | ISSN: 2966-0513 | Goiânia, Goiás